Uma pessoa que inventa uma nova receita de biscoito tem o direito de patentear o sal e farinha? O descobridor do cromossomo humano poderia ter patenteado a molécula inteira? Ou o primeiro anatomista a ver um fígado?
Foi com metáforas assim que os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos arguiram os advogados Christopher Hansen, da União Americana de Liberdades Civis (ACLU), e George Castanias, da companhia Myriad, no caso que avalia a legalidade das parentes concedidas à empresa sobre dois genes humanos, BRCA1 e BRCA2, ambos ligados ao risco de desenvolvimento de câncer de mama.
A arguição dos advogados ocorreu em 15 de fevereiro. A decisão sobre o caso só é esperada dentro de alguns meses. Embora a patente da Myriad, mesmo se mantida, deva expirar nos próximos dois anos, o caso vem sendo acompanhado com grande interesse, pois a sentença final terá consequências graves para toda a indústria de biotecnologia.
O tribunal não só decidirá se genes humanos, uma vez isolados, são passíveis de patente, como também deve fixar, na jurisprudência americana, uma interpretação mais precisa do que é um "produto da natureza", categoria que inclui substâncias, como água ou madeira, que não podem ser patenteadas. Dependendo do entendimento da Corte, outras moléculas biológicas complexas e de interesse da indústria farmacêutica, como proteínas e anticorpos, poderiam vir a ser cobertas por essa definição.
Folha de árvore
A primeira metáfora aplicada ao caso durante a arguição, usada pelos juízes Samuel Alito e Ruth Bader Ginsburg, foi a de "uma folha de uma árvore da Amazônia", que teria propriedades terapêuticas. O que seria patenteável, nesse caso?
Hansen, o advogado da ACLU, disse que o processo para extrair a molécula terapêutica poderia ser alvo de patente, assim como a droga resultante, mas não a molécula natural em si, ou a árvore. Confrontado com a mesma questão, o advogado da Myriad, Castanias, teve alguma dificuldade em explicar por que a patente dos genes BRCA1 e BRCA2 seria diferente de uma patente sobre a árvore inteira.
À afirmação de Castanias, de que a extração dos genes do genoma humano envolveu um "processo inventivo", a juíza Elena Kagan respondeu que a extração de uma árvore de seu hábitat também poderia envolver um processo complexo. Então, por que a árvore não poderia ser patenteada?
Castanias argumentou que o isolamento dos genes foi algo "diferente, em espécie" de simplesmente recortar algo que já existia no genoma. O processo, disse ele, envolveu a recriação do gene em laboratório, não a remoção de um trecho pré-existente de DNA. "Apenas depois de ele [o gene] ter sido criado é que os cientistas podem saber onde e como cortar" o genoma, disse. A metáfora que usou foi a de um taco de beisebol, que é "isolado" da árvore de onde a madeira foi extraída.
Incentivos
Hansen repetiu algumas vezes que a objeção da ACLU e dos demais grupos que contestam as patentes da Myriad diz respeito ao patenteamento dos genes em si, e não aos processos usados para detectar o gene ou para isolá-lo, nem de tecnologias derivadas da descoberta, que continuariam a ser passíveis de patente, caso seu lado vença a disputa jurídica.
"O fato de eu descobrir uma nova utilidade para o chumbo não me permite patentear o chumbo", disse, como exemplo do raciocínio por trás da ação. Ele afirmou ainda que considera aceitável a patente de DNA recombinante, onde "o cientista, não a natureza" decide a sequência de bases da molécula.
Ainda assim, o juiz Antonin Scalia e Elena Kagan foram incisivos na questão dos incentivos: se genes humanos não puderem ser patenteados, por que as empresas deveriam se dar ao trabalho de identificá-los?
"Se você presume que é preciso muito trabalho e muito investimento para identificar este gene", perguntou a juíza Kagan, "o que a Myriad está ganhando? Por que não deveríamos temer que a Myriad ou outras empresas simplesmente digam, não vamos mais fazer isso?" Scalia, por sua vez, questionou "por que alguma empresa incorreria no investimento se não pode patentear?"
Inovação
Hansen respondeu que boa parte dos recursos investidos na pesquisa tinha vindo de financiamento público, e que a permissão para o patenteamento de "produtos da natureza" seria prejudicial para a inovação tecnológica. "Quando se tranca um produto da natureza, isso impede a indústria de inovar", disse ele. "Pode haver um milhão de coisas que poderiam ser feitas com o gene BRCA, mas ninguém além da Myriad tem permissão para procurar, e isso é bloquear a ciência, não estimulá-la".
Pressionado pelo juiz, ele finalmente respondeu o incentivo para os cientistas, na ausência de patentes, seriam curiosidade e prestígio. Scalia considerou a resposta decepcionante.
Um representante do governo Barack Obama, Donald Verrilli, também fez uma apresentação sobre o assunto para o tribunal. Verrilli defendeu a doutrina do "produto da natureza". "A alegação de que o DNA isolado é uma invenção humana se baseia inteiramente no fato de que ele não está mais conectado, em nível molecular, ao que o cerca no corpo. Mas permitir a patente nessa base efetivamente impede que qualquer outra pessoa use o gene em si para qualquer propósito médico ou científico", disse.
Ele discordou, no entanto, da opinião de Hansen, de que apenas DNA recombinante, com sequências definidas artificialmente, deveria ser passível de patente. Verrilli dise que o Poder Executivo não se opõe à concessão de patentes para o chamado DNA complementar, ou cDNA, moléculas de DNA sintetizadas a partir de sequências de RNA. "Sob o ponto de vista conceitual, acreditamos que o cDNA é uma criação do laboratório, uma criação artificial. De modo geral, é elegível para patente", disse.
Consequências
Especialistas ouvidos pelo jornal Los Angeles Times disseram que o julgamento é importante porque definirá o tom da questão de patentes de produtos biotecnológicos, e o resultado poderá ter um "efeito congelante" sobre os investimentos na área.
"Se a Corte decidir que produtos da natureza, num sentido mais amplo, não podem ser patenteados, até onde isso irá? É possível que pretendam cobrir mais do que apenas genes", disse a advogada Lisa Haile, ouvida pelo jornal.
Uma decisão sobre o caso é esperada para 30 de junho.
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