Lei Paulo Delgado
Embora tenha trazido avanços ao reorientar o modelo assistencial de saúde mental no Brasil, a lei Paulo Delgado, de 2001, precisa ser rediscutida. A afirmação é de um estudo publicado na revista Paidéia, editada pelo Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FCLRP), da Universidade de São Paulo (USP).
O trabalho, feito por Rafael de Tilio, doutorando em psicologia da FCLRP, conclui que o texto, também conhecido como Lei da Reforma Psiquiátrica, é reticente em relação às implicações jurídicas dos portadores de transtornos mentais. Em casos de atos criminais, segundo os Códigos Penal e Civil, eles podem ser internados em instituição de tratamento sem estabelecimento prévio do tempo de internação.
Definição jurídica de loucura
"A lei de 2001 deixa um vazio em relação a esse tema. Mudar apenas as formas de tratamento não basta, é preciso modificar também a definição jurídica do que seria loucura e suas implicações no âmbito social. A maior falha da lei, em síntese, é que ela definiu o que fazer com a loucura, mas não definiu o que seria loucura", disse Tilio à Agência FAPESP.
O autor sugere que, ao praticar um ato lesivo a terceiros, o portador de transtorno mental seja responsabilizado por meio de penas alternativas não-privativas de liberdade. "O importante é que seu ato não passe em branco. Atualmente existe um risco de se eximir o doente mental da responsabilidade sócio-jurídica, considerando que as conseqüências não são de sua inteira incumbência", afirmou.
Reforma psiquiátrica
Apesar das críticas, o autor salienta que a reforma psiquiátrica trouxe avanços com relação ao tratamento, passando de um "modelo asilar e excludente para um inclusivo e extramanicomial que inclui a comunidade e a família".
Inspirada nos princípios da experiência italiana, com o propósito de reduzir leitos em hospitais psiquiátricos, garantir assistência aos egressos desses hospitais, criar centros de convivência, ambulatórios e programas social, a lei brasileira, no entanto, não aboliu - como ocorreu na Itália - o caráter de periculosidade dos atos praticados por portadores de transtornos mentais.
"O importante da experiência italiana foi a junção da remodelação do sistema de assistência, que diminuiu o poder do manicômio, com o reposicionamento estatutário do doente. No Brasil isso não aconteceu, pois aqui ainda se considera que o doente deve, quando cometer um crime, ser submetido a medidas de segurança que podem se tornar verdadeiras prisões perpétuas", disse.
Incapacidade civil pelos atos cometidos
Segundo Tilio, o Código Civil brasileiro estabelece que, em caso de dano a terceiros, o doente seria eximido de responsabilidade caso seja comprovada em perícia a incapacidade civil pelos atos cometidos. A lei transfere a responsabilidade aos responsáveis pelos doentes.
"Enquanto isso, na esfera criminal, o Código Penal entende que o portador de transtornos mentais não é imputável por não possuir qualidades intelectivas plenamente desenvolvidas. E, portanto, deve ser submetido à medida de segurança até que sua periculosidade cesse. Mas isso não ocorrerá, porque a ausência do refreamento é inerente à loucura", afirmou.
Segundo Tilio, uma reparação na lei deveria propiciar um impacto na subjetividade do doente. "Em vez de simplesmente prendê-lo ou aplicar multa, por que não inseri-lo em um programa de cuidado da cidade e do espaço público, de modo que atue na comunidade de maneira produtiva?", questionou.
Mudanças de perspectivas sobre a loucura
O pesquisador reconhece que uma alteração na lei não irá mudar automaticamente o que se pensa sobre a loucura. Mas, segundo ele, a legislação brasileira, apesar de insuficiente, foi importante por preparar um clima social e oferecer outra possibilidade de entendimento da loucura, não mais como desvio a ser isolado, mas sim como diversidade a ser integrada.
"É necessário que a sociedade passe a ver o louco de maneira diferente, como um cidadão com certas limitações - como as que todos nós temos - e não como um tipo de demônio incontrolável que deve viver encarcerado", afirmou.
Periculosidade dos doentes
De acordo com Tilio, a lei precisa eliminar o caráter de periculosidade atribuído aos doentes, que justifica a possibilidade de imposição de medidas de segurança. Elas poderiam ser substituídas por penas alternativas não-privativas de liberdade ou por apenações, isto é, isolamento com limitação temporal pré-definida.
"A responsabilização civil também deveria ser mudada, e não simplesmente transferida para seu representante legal, objetivando uma responsabilização subjetiva do autor. Também a incapacidade civil deveria ser revista, adequando-se às particularidades do quadro clínico de cada indivíduo", afirmou.
Laudos de capacidade civil
Tilio apontou ainda que os laudos que estabelecem a capacidade civil do doente deveriam incorporar os pareceres provenientes de profissionais de saúde mental de diversas áreas de atuação - como a psicologia, a assistência social, a terapia ocupacional e as artes -, descentralizando o poderio dos psiquiatras e dos juízes.
"Seria preciso relativizar a proeminência da medicina psiquiátrica. Mas não se trata, como ainda muitos grupos fazem, de lutar pelo fim da psiquiatria: o que se combate são as formas de desumanização das modalidades de tratamento, da internação compulsória, dos maus-tratos e da farmacologização excessiva. Obviamente, os manicômios deverão desaparecer para dar lugar a uma rede preventiva mais bem difusa e presente na comunidade", disse,
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