02/03/2017

Livro discute cinismo no campo da saúde

Redação do Diário da Saúde
Livro discute cinismo no campo da saúde

[Imagem: Divulgação]

Cinismo natural

O cinismo é mais comum do que a maioria gostaria de admitir - e ele se manifesta, inclusive, no âmbito de publicações científicas e nas condutas e prescrições de médicos e autoridades de saúde.

É o que se dispuseram a mostrar especialistas em Saúde Pública e Antropologia Social da Fiocruz em um livro intitulado À Procura de um Mundo Melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde.

O objetivo da obra é "considerar a naturalização do cinismo que nos envolve e também a muitas práticas sanitárias para saber como demarcar e dimensionar o enfrentamento diante dos poderes que obstaculizam o acesso a um mundo melhor," dizem os autores, ressaltando que se trata de "dissipar de diante dos olhos a fumaça que nos oculta o óbvio".

Cinismo na saúde

O cinismo, segundo os autores, não é uma mera questão de falseamento de discursos, mas diz respeito, sobretudo, aos efeitos nocivos de uma estrutura contraditória, ambígua, sustentada pelos arcabouços políticos, econômicos e sociais.

Vários são os exemplos de cinismo no campo da saúde. Os indivíduos são, a todo momento, chamados a se responsabilizar pessoalmente pelo cuidado com a própria saúde. Eles têm a obrigação moral de se autocuidar, sem levar em conta as injunções do contexto dominante, seguindo comportamentos que se caracterizam, sobretudo, pelo autocontrole que 'especialistas' indicam como as 'medidas certas'. Esses mesmos indivíduos, porém, não só têm fácil acesso a fastfoods e bebidas alcoólicas, como tais produtos lhes são oferecidos de forma tentadora.

Além disso, a população está intensamente exposta a fontes de desgaste e sofrimento no trabalho e na vida urbana, sem que essas situações potencialmente causadoras de adoecimento sejam, de fato, levadas em conta - no máximo, os indivíduos recebem orientação 'especializada' sobre como administrar o próprio estresse. "Sem dúvidas, há um processo reiterado de naturalização dos mal-estares na nossa civilização", assinalam os autores.

Outro exemplo se refere à automedicação. Embora essa prática venha sendo bastante condenada e combatida, as críticas que ela recebe não são acompanhadas por discussões aprofundadas sobre fenômenos correlatos que também representam riscos à saúde. Entre esses fenômenos, destacam-se a transformação dos médicos em prestadores de serviços e dos pacientes em consumidores, e a influência que as indústrias farmacêuticas e as empresas de planos de saúde exercem sobre as prescrições médicas.

Melhoramento do corpo humano

No terreno das prescrições médicas, o que não falta é a oferta de novas práticas, tecnologias e produtos farmacológicos que prometem maximizar o desempenho do corpo humano, ampliar a longevidade com vitalidade e, principalmente, procurar mitigar os sofrimentos emocionais que eclodem ao nosso redor.

Só que esses produtos, além de apresentarem efeitos adversos indesejados, têm importantes custos monetários, de tal sorte que quem não tem dinheiro tem muitas dificuldades para seguir as prescrições de uma pretendida 'vida saudável'.

É difícil ter acesso a recursos que prenunciam melhor desempenho, bem-estar e vida longa em meio aos desgastes produzidos pelos altos níveis competitivos da vida moderna, pelos ditames dos jogos financeiros e corporativos e sua inapelável geração de precariedades de várias ordens.

"Cientistas primam pelo cinismo quando se autopromovem e, a serviço do mercado da saúde, impõem ao público consumidor, e aos 'colegas', o uso das tecnologias de melhoramento. A homilia que descontextualiza os fenômenos da saúde e lhes atribui uma falsa natureza desinteressada e apolítica nada mais é do que o discurso cínico da ciência médica em sua sórdida composição com o neoliberalismo," analisa o pesquisador Gil Sevalho, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que assina o prefácio do livro.

Cinismo na ciência

De fato, o cinismo se manifesta não só no chamado mercado da saúde, como também na esfera acadêmica.

Embora a ciência pretenda ser representação o mais fiel possível da realidade, isenta da subjetividade que distorce as evidências, a produção da "verdade científica" apresenta problemas - e frequentemente acaba servindo ao domínio econômico e político.

Basta atentar para o fato de que a mesma pergunta de pesquisa, com o mesmo conjunto de dados, mas com diferentes técnicas analíticas, pode produzir resultados e conclusões diversas, o que enseja o questionamento de que as chamadas evidências demonstradas por pesquisas podem ter resultados passíveis de acobertar interesses mercadológicos.

Questionamento ainda mais pertinente em face de um ambiente acadêmico no qual, segundo os autores, "predomina agora um modelo de universidade operacional utilitário-competitiva que evita criticar de modo estrutural o presente estado de coisas".

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